1 – Introdução
Pretende-se, com o presente
artigo, fornecer um modesto contributo na busca da melhor resposta à
problemática que o tema – indiciado pelo título – encerra. A ideia da sua
elaboração surgiu após o «meet» que decorreu no Parque das Nações – com os
desenvolvimentos que todos pudemos conhecer através
da comunicação social. [1]
Após a desordem que se
instalou e o pânico gerado, a força de segurança territorialmente competente
instalou um perímetro de segurança, barrando a passagem a cidadãos que se
enquadrassem no perfil dos prevaricadores.
Não obstante o direito de
livre deslocação e fixação [art.º
44.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP)], esta medida
restritiva, levada a cabo pelo tempo estritamente indispensável, revelou-se
como necessária para garantir a segurança e a protecção de pessoas e dos seus
bens, face à perturbação violenta da ordem pública (com condutas
jurídico-penalmente relevantes), art.º
30.º da Lei de Segurança interna, cjg. art.º
18.º n.º 2 da CRP.
Na subsequência daquela
actuação policial, foi publicado, na rede social «Facebook», um vídeo (captado
por intermédio de um telemóvel) que reproduzia um encontro com polícias
uniformizados à entrada do Centro Comercial Vasco da Gama.
Analisemos, doravante, a
legitimidade dessa gravação, bem como da sua publicação, à luz dos direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos.
2 – Do Direito à Imagem
Desde logo, consultando o art.º
79.º n.º 1 do Código Civil (CC), concluímos que a imagem de uma pessoa
não pode ser exposta, reproduzida ou lançada no comércio sem o seu
consentimento (independentemente do meio utilizado: fotografia, pintura ou
desenho).
Mas o direito à imagem,
enquanto direito fundamental de natureza pessoal (art.º
26.º n.º 1 da CRP), não se fica pelo disposto no Código Civil. Assim,
não só ilícita será a exposição, reprodução e difusão da imagem de uma pessoa,
sem o seu consentimento, como também a mera captação ou produção (até porque
nunca se sabe o uso que lhe irá ser dado).
2.1 – Limites do Direito
à Imagem
Nos termos do art.º
18.º n.º 2 da CRP, o direito à imagem admite restrições legais (nos
casos expressamente previstos na própria Constituição), desde que estritamente
necessárias à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos.
Logo no art.º
79.º n.º 2 do CC, são elencadas várias restrições a esse direito,
entre elas: a notoriedade da pessoa retratada; o cargo que a mesma desempenha;
exigências de polícia ou de justiça; finalidades científicas, didácticas ou
culturais; quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares
públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido
publicamente (desde que não resulte prejuízo para a honra, reputação ou simples
decoro do retratado, art.º
79.º n.º 3 do CC).
Encontramos, ainda, outras
limitações a esse direito, v.g.: no Código de Processo Penal (art.º
167.º); na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (Medidas de Combate à
Criminalidade Organizada), mais precisamente no seu art.º
6.º; ou na Lei
n.º 1/2005, de 10 de Janeiro (diploma que regula a utilização de câmaras de
vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização
comum).
2.2 – O direito à Imagem
de Polícias Uniformizados
Como vimos, o direito à imagem
não é um direito absoluto, admitindo restrições legais, v.g., em função do
cargo exercido pela pessoa retratada. Será que podemos incluir, aqui, um
polícia uniformizado?
Existem pessoas (v.g. aquelas
que exercem cargos políticos) que, pelo papel que desempenham na sociedade,
estão sujeitas à exposição da sua imagem. Existe como que um consentimento
implícito de restrição do direito à sua imagem em função do cargo exercido (com
os limites impostos pelo art.º
79.º n.º 3 do CC).
E embora a imagem física dessa
pessoa abranja todo o seu corpo, é o rosto (em regra) que a individualiza e a
torna reconhecível pelos demais (enquanto titular daquele cargo).
Já relativamente aos polícias,
embora seja também o rosto que os individualiza, é o uniforme que os identifica
como tal. Não existe, pois, uma relação entre o seu rosto e a função exercida
(salvo, claro, quando o polícia, por algum motivo – meritório ou não –,
alcançou a notoriedade).
Sendo assim, não obstante a
natureza de serviço público da actividade policial, a imagem do polícia é muito
mais do que a farda que enverga e que o identifica como tal, compreendendo algo
que é reflexo da sua identidade pessoal, o seu rosto.
«Ex positis», o agente
policial tem, pois, a faculdade de recusar a captação e/ou exibição da sua
imagem, em especial do seu rosto (quando ela não se enquadre nas restrições
legais do seu direito). [2]
3 - Direito à Palavra
O direito à palavra é, também,
um direito fundamental de natureza pessoal (art.º
26.º n.º 1 da CRP). Contrariamente ao que sucede com o direito à
imagem, não encontramos, no direito civil, um preceito que possa delimitar o
seu conteúdo.
Tem-se entendido, contudo, que
os direitos à palavra e à imagem são direitos análogos, sendo, por isso, também
aplicável àquele o art.º
79.º n.º 1 do CC com as devidas adaptações. Assim, podemos concluir,
desde logo, que a voz de uma pessoa também não pode ser gravada e/ou difundida
sem o seu consentimento. [3]
Relativamente às restrições
legais a este direito, valem as observações anteriormente feitas para o direito
à imagem.
4 – Condutas
Jurídico-penalmente Relevantes
Vimos anteriormente que os
direitos à imagem e à palavra gozam de tutela constitucional e civil.
Analisemos, agora, a sua protecção no âmbito do direito penal.
Iniciámos o presente escrito
narrando o sucedido num encontro de jovens («meet») no Parque das Nações. Na
sequência dos incidentes reportados, um cidadão decidiu aproximar-se de agentes
uniformizados (cerca de 2/3 metros), filmando-os durante algum tempo (contra a
sua vontade expressa), publicando, de seguida, o vídeo na rede social «Facebook».
Ora, analisando, desde logo, o
conteúdo do art.º
79.º n.º 2 do CC, verificamos que esta restrição (não consentida) do
direito à imagem dos agentes policiais não se encontra justificada por nenhuma
das circunstâncias aí previstas.
Nunca poderíamos considerar
que a imagem captada vem “enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de
interesse público ou que hajam decorrido publicamente”, pois o principal
objecto da captação é, na verdade, a imagem dos agentes policiais (em especial
os seus rostos).
Sendo assim, podemos concluir
que tal situação é subsumível no art.º
199.º n.º 2 al.ªs a) [captação da imagem contra a vontade] e b) [publicação
no «Facebook»] do Código Penal (CP).
Mas será que a conduta só
integra o tipo de crime do art.º
199.º do CP após o visado manifestar a sua vontade (expressa ou
presumida) de não querer ser filmado?
Na maioria dos casos, a
filmagem abrange não só a captura de imagem, mas também de som. Assim sucedeu
no caso concreto, ela abrangeu também palavras dirigidas, pelos agentes
policiais, a um círculo de pessoas numericamente determinadas, logo, palavras
não públicas.
Não obstante a «supra»
referida analogia entre os direitos à imagem e à palavra, encontramos, no art.º
199.º do CP, duas incriminações distintas, com uma redução
significativa da tutela daquele direito (à imagem) em relação a este (direito à
palavra).
Se, por um lado, como já
referido, a captura da imagem de uma pessoa (por intermédio de fotografia ou
vídeo) só é ilícita quando ocorre contra a sua vontade (necessita de uma
manifestação de vontade), art.º
199.º n.º 2 al.ª a) do CP; por outro, a gravação da sua palavra é
ilícita logo que decorra sem consentimento, art.º
199.º n.º 1 al.ª a) do CP.
Perante o exposto, e voltando,
de novo, ao caso concreto, a gravação, contendo palavras não públicas, seria
desde logo ilícita porque não consentida.
5 – Do Conflito de Valores
Constitucionais
5.1 – Vimos que quer a
obtenção da imagem de uma pessoa contra a sua vontade, quer a gravação das suas
palavras sem consentimento, são condutas jurídico-penalmente relevantes,
subsumíveis respectivamente nos n.ºs
2 al.ª a e 1 al.ª a) do art.º 199.º do CP.
Dada a actualidade do crime
[flagrante delito em sentido estrito, art.º
256.º n.º 1 do Código de Processo Penal (CPP)], o agente policial
poderia proceder à detenção do captor da imagem ou da palavra [art.º
255.º n.º 1 al.ª a) do CPP], devendo manifestar, no respectivo Auto de
Notícia, vontade inequívoca de procedimento criminal contra ele, art.º
255.º n.º 3 do CPP (já que estamos perante um crime de natureza
semi-pública, art.º
198.º, «ex vi» art.º
199.º n.º 3, ambos do CP).
No caso concreto, o telemóvel
seria apreendido nos termos do art.º
178.º n.º 1 do CPP, enquanto objecto que serviu a prática do crime,
com conteúdo susceptível de servir a prova.
Temos que ter sempre presente,
no entanto, que não obstante determinada restrição de direitos, liberdades e
garantias se encontrar prevista na lei, ela deve limitar-se ao necessário para
a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art.º
18.º n.º 2 da CRP).
É que o telemóvel,
hodiernamente, assume-se como um repositório de informação, susceptível de
revelar hábitos, gostos, ambições, orientação sexual, etc. Como tal, uma
visualização não consentida pode colidir com direitos fundamentais, entre eles,
o direito à reserva da intimidade da vida privada do seu titular.
Como decorrência deste
direito, deve, pois, o telemóvel ser apreendido sem visualização do seu conteúdo.
5.2 – Agora suponhamos
que um agente policial se depara com um cidadão com a câmara de telemóvel
apontada a si, olhando continuamente para o ecrã. Testemunhas afirmam ter visto
a imagem policial enquadrada no aparelho, não conseguindo asseverar, no entanto,
se o indicador de gravação (normalmente uma luz vermelha ou as letras “REC”) ou
o respectivo temporizador estavam accionados.
Perante estes factos, ainda
assim, um observador objectivo, valorando-os, ajuizaria no sentido de se
convencer que o crime estaria a ser cometido. Estamos, pois, perante uma
suspeita razoavelmente fundamentada, e, como tal, susceptível de integrar um
Auto de Notícia.
De modo a confirmar essa
suspeita, deveria, o agente policial, tentar obter o consentimento do visado –
documentando-o por qualquer forma – para a visualização dos ficheiros de
armazenamento do telemóvel – «volenti not fit injuria». [4] [5]
Não se obtendo o
consentimento, o telemóvel seria apreendido – pelos motivos acima mencionados
–, sem visualização do seu conteúdo.
Mas, como já referido
anteriormente, o telemóvel assume-se, actualmente, como um repositório da mais
variada informação, muita dela indispensável no dia-a-dia do seu utilizador
(contactos telefónicos, «e-mails», documentos, etc).
Tendo isto em consideração – e
não obstante estarmos perante um objecto susceptível de apreensão –, deverão
ser tomadas diligências no sentido de minimizar eventuais “danos” gerados pela
privação do uso do telemóvel.
Não obstante o conteúdo do art.º
183.º n.º 2 do CPP, deve ser sempre fornecida uma cópia do Auto de
Apreensão ao visado, ainda que o mesmo a não tenha solicitado. Caso este se recuse
a recebê-la, deverá ser elaborada certidão de recusa no próprio Auto.
No Auto de Apreensão – que, em
princípio, o visado irá ler, assinar e ficar com uma cópia –, mais precisamente
em “informações complementares”, deverá mencionar-se que o titular do objecto
apreendido foi notificado da possibilidade de requerer ao juiz de instrução a
modificação ou revogação da medida, nos termos do art.º
178.º n.º 6 do CPP. [6]
Este é, no entanto, um
requerimento que visa modificar ou revogar a apreensão já validada pela
autoridade judiciária competente (em regra o Ministério Público). Sendo assim,
deve o órgão de polícia criminal, responsável pela apreensão, comunicá-la, a
essa autoridade judiciária, o mais rapidamente possível (não obstante o prazo
máximo de 72 horas ínsito no art.º
178.º n.º 5 do CPP), de modo a que a apreensão possa ser apreciada e
validada com essa mesma celeridade.
__________________________
__________________________
[1] Os «meets» (encontros) são
eventos organizados por jovens, a partir das redes sociais, com o objectivo de
se juntarem e conviverem, partilhando, posteriormente, as imagens captadas
nesses encontros.
[2] Em determinadas situações,
o direito de reserva sobre a imagem permite garantir a segurança e protecção
não só dos agentes policiais como também dos seus familiares. Como exemplo,
imaginemos um agente policial, oriundo de um bairro problemático, que decide
seguir a carreira policial. Visando, sobretudo, proteger os seus familiares,
resolve encobrir essa actividade, exercendo-a, para isso, longe das origens.
Esse objectivo poderá sair frustrado com a publicação de uma fotografia sua,
uniformizado.
[3] Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (CRP Anotada, vol. I, 4.ª Edição, em anotação ao art.º 26.º n.º 1): “O direito à palavra desdobra-se, assim, em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz (com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada); (b) direito às “palavras ditas”, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra. Mais uma vez, este direito sofre de compressões no caso dos discursos públicos de agentes públicos e políticos”.
[3] Para GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (CRP Anotada, vol. I, 4.ª Edição, em anotação ao art.º 26.º n.º 1): “O direito à palavra desdobra-se, assim, em três direitos: (a) direito à voz, como atributo de personalidade, sendo ilícito, sem consentimento da pessoa, registar e divulgar a sua voz (com ressalva, é claro, do lugar em que ela foi utilizada); (b) direito às “palavras ditas”, que pretende garantir a autenticidade e o rigor da reprodução dos termos, expressões, metáforas escritas e ditas por uma pessoa; (c) direito ao auditório, ou seja, a decidir o círculo de pessoas a quem é transmitida a palavra. Mais uma vez, este direito sofre de compressões no caso dos discursos públicos de agentes públicos e políticos”.
[4] Este é um axioma jurídico
que, numa tradução livre do original, significa que ninguém se pode queixar, em
juízo, de uma ofensa consentida aos seus direitos (se livremente
disponíveis).
[5] Hodiernamente, a apreensão
do telemóvel não é garantia de que a imagem ou gravação (ilicitamente obtida)
não possa ser utilizada, já que muitos aparelhos permitem que as fotografias e
vídeos possam ser guardados simultaneamente e de forma automática em «clouds», v.g.,
no caso do «Windows Phone» o «Microsoft OneDrive».
[6] O visado poderia, neste
caso, requerer o levantamento da apreensão e consequente restituição do
telemóvel após eventual cópia de ficheiros tidos como relevantes para a
investigação do crime indiciado.
Sem comentários:
Enviar um comentário