Como sabemos, a Lei
n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro (29.ª alteração ao Código Penal),
introduziu, no art.º
207.º do Código Penal (doravante denominado somente por CP),
relativamente ao furto simples, um n.º 2 com o seguinte conteúdo:
«No caso do artigo
203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a
conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao
público, relativamente à subtração de coisas móveis expostas de valor diminuto
e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por
duas ou mais pessoas.»
Sendo assim, no caso aí
previsto, o furto reveste natureza particular, exigindo, a lei, enquanto
condição de procedibilidade da acção penal, para além da queixa do ofendido, a
constituição de assistente, art.º
246.º n.º 4 do Código de Processo Penal, CPP (sendo necessário o
pagamento de Taxa de Justiça, art.º
8. º do Regulamento das Custas Processuais e a constituição de
mandatário, art.º
70.º do CPP), e dedução de acusação particular.
Na exposição de motivos da Proposta
de Lei n.º 75/XII, nomeadamente no seu n.º 4, podemos compreender o motivo
pelo qual o legislador optou pela natureza particular, a saber:
«A opção comercial de expor os
seus produtos justifica que o proprietário providencie por adequada vigilância
e a justiça penal, como «ultima ratio», só deve ser chamada a intervir nestes
casos quando o ofendido deduza ele próprio a acusação.»
Incumbe, pois, ao proprietário
do estabelecimento comercial, o dever especial de prevenir o furto de bens que
ele próprio decidiu expor, adoptando medidas profícuas de redução dos riscos.
Este dever resulta do estímulo
ao consumo desenfreado, desencadeado sobretudo por parte das grandes
superfícies comerciais (e das próprias marcas), numa altura em que, cada vez
mais, as mercadorias, mais do que proporcionar a satisfação de necessidades,
possibilitam a valorização individual e o reconhecimento social.
Analisemos, doravante, os
requisitos que fazem depender a natureza particular do crime em análise.
1 – Necessidade de a conduta
ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público
É no período de abertura ao
público que o consumidor tem contacto directo com a mercadoria – de forma
lícita, é claro! – e é atraído por ela.
Este período pode não coincidir
necessariamente com o horário de funcionamento do estabelecimento comercial,
pois, como sabemos, sobretudo nas grandes superfícies comerciais, o atendimento
por vezes prolonga-se para além desse horário de funcionamento (caso de
clientes que permanecem para além da hora).
2 – Subtracção de coisas móveis expostas
Para sabermos o que são, do
ponto de vista jurídico, coisas móveis, necessitamos de conjugar os art.ºs
202.º, 204.º e 205.º do
Código Civil (CC).
O crime só revestirá natureza
particular se as coisas móveis estiverem expostas no estabelecimento comercial,
ou seja, exibidas sem qualquer barreira física (v.g., armário fechado à chave)
que impeça a sua livre acessibilidade/subtracção (subtracção entendida como o
poder material sobre a coisa tendo em vista a sua apropriação) por parte do
cliente.
3 – Valor diminuto das coisas
subtraídas
Do ponto de vista jurídico-penal
[art.º
202.º al.ª c) do CP], a coisa tem valor diminuto quando não excede uma
unidade de conta avaliada no momento da prática do facto.
O valor da unidade de conta
[correspondente a ¼ do Indexante dos Apoios Sociais (IAS)] mantêm-se, desde 20
de Abril de 2009, em 102,00 €, devido ao facto de as sucessivas Leis do
Orçamento de Estado terem suspendido a actualização anual do IAS.
Este valor diminuto não deve
ser confundido com bagatela penal (à qual se encontra associado o princípio «de
minimis non curat praetor»). Considerar este valor como uma bagatela penal
seria até uma afronta, tendo, v.g., em consideração o valor Rendimento
Social de Inserção (RSI), 180,99 €.
Sem deixar de penalizar tal
subtracção, procura-se contudo evitar sobrecarregar o sistema judicial com
crimes patrimoniais de pequena monta quando sobre os proprietários dos estabelecimentos
comerciais impende um dever especial de os prevenir.
4 – Recuperação imediata das
coisas subtraídas
Pode suceder que, logo após a
subtracção (ou a tentativa, art.ºs
22.º, 23.º
n.º 1 e 203.º
n.º 2 do CP), o objecto seja recuperado, incólume, ficando, de novo,
na disponibilidade mercantil.
Esta recuperação implica
sempre a intervenção de um terceiro (v.g., de uma autoridade policial) sobre o
agente do crime, contrariante ao que sucede com a restituição (art.º
206.º n.ºs 2 e 3 do CP), em que a iniciativa parte deste.
Sendo assim – e estranhamente
–, se o bem for recuperado, o crime de furto reveste natureza particular (art.º
207.º n.º 2 do CP); mas, contudo, se o agente do crime voluntariamente
fizer a sua entrega (restituição), o furto revestirá a natureza semi-pública (art.º
206.º n.º 2 e 3 do CP), sendo (n.º 2), ou podendo ser (n.º 3), a pena
especialmente atenuada.
No que concerne à “recuperação
imediata” da coisa subtraída, entendemos que tal imediatismo coincide com o
estado de flagrante delito do crime de furto (art.º
256.º do CPP). Todavia, este flagrante delito (no caso de se
encontrarem preenchidos todos os requisitos do n.º
2 do art.º 207.º do CP) não legitima a detenção do agente, mas somente
a sua identificação (art.º
255.º n.º 4 do CPP).
4.1 – Danificação da
coisa recuperada
Recuperada a coisa subtraída,
a mesma reintegrará de novo a esfera patrimonial do titular do estabelecimento,
e, desde que incólume, poderá ser novamente colocada no circuito
comercial.
Perante este cenário (e face à
natureza particular do crime), desincentiva-se o recurso à justiça penal por
parte dos proprietários dos estabelecimentos comerciais (que, como já
referimos, têm o dever de prevenir o furto dos bens que decidiram expor), evitando-se
a sobrecarga do sistema judicial com crimes de somenos importância.
E face à “recuperação” de um
bem danificado?
Neste caso, parece-nos que o
crime deverá manter a natureza semi-pública, podendo ter lugar a detenção em
flagrante delito (não admissível nos crimes de natureza particular, art.º
255.º n.º 4 do CPP) e consequente julgamento em processo sumário (art.º
381.º e sgts. do CPP).
Contudo, ao consultarmos o
crime de dano, art.º
212.º do CP, verificamos que lhe é aplicável, por via do seu n.º 4,
também o art.º
207.º (natureza particular), nomeadamente o n.º 2 que temos vindo a
referir, com as necessárias adaptações.
Mas terá realmente o
legislador pretendido incluir o n.º
2 do art.º 207.º na aludida remissão? Perante o exposto, a resposta
terá que ser negativa.
4.2 – Recuperação
imediata após uma burla
Imaginemos que um cidadão se
desloca a um estabelecimento comercial com o intuito de adquirir uma garrafa de
vinho de uma conceituada marca, cujo preço anunciado é 16,59 €.
Retira da sua carteira um
código de barras que previamente recortou de uma garrafa de vinho de outra
marca, de valor inferior (3,75 €), e cola-o por cima do código de barras
original.
Coloca mais dois ou três
produtos no seu cesto de compras e dirige-se à caixa de pagamento mais
movimentada. Vem a pagar efectivamente 3,75 € pela garrafa de vinho.
O operador de caixa,
desconfiando do facto, chamou um segurança, sendo o cidadão interceptado, logo
de seguida, ainda na posse das referidas compras. Foi possível retirar o código
de barras sobreposto, sem qualquer dano no original. A garrafa foi devolvida ao
comerciante.
Tendo em consideração tudo o
que temos vindo a referir, entendemos que, no caso que aqui apresentámos,
também o procedimento criminal pelo crime de burla dependeria de acusação
particular, art.º
207.º n.º 2 do CP, «ex vi», art.º
217.º n.º 4 do mesmo diploma legal.
Contudo, este crime fim (a
burla) teve, como instrumento, um crime de falsificação, verificando-se assim,
nos termos de jurisprudência fixada, concurso real ou efectivo entre os dois
crimes, burla e falsificação (este último de natureza pública).
5 – A conduta não seja
cometida por duas ou mais pessoas
Da leitura da norma em apreço
(art.º
207.º n.º 2 do CP), podemos concluir, «a contrario sensu» da sua
redacção, que, se perpetrado por duas ou mais pessoas, o crime de furto não
reveste já natureza particular, mas semi-pública.
A actuação plural (pela maior
capacidade de acção e vontade reforçada) faz aumentar o risco de efectiva lesão
para o bem jurídico protegido (neste caso a propriedade).
Por este motivo, não obstante
o dever de o proprietário do estabelecimento comercial adoptar uma adequada
vigilância sobre os bens que decidiu expor, o legislador optou (opção de
política criminal) por manter, em situações de actuação conjunta, a natureza
semi-pública do crime de furto.
Como já deixámos antever,
entendemos que o cometimento por duas ou mais pessoas implica que cada uma
delas (pelo menos duas) tome parte directa na execução do facto típico. É
necessário portanto que exista comparticipação criminosa sob a forma de
co-autoria (art.º
26.º do CP).
É essencial, pois, que cada
uma dessas pessoas (por acordo ou adesão) forneça um contributo indispensável à
realização do facto típico (v.g., vigiando o segurança do estabelecimento
comercial).
5.1 – Conduta cometida
por duas pessoas com idades de 15 e 17 anos
Neste caso estamos perante um
menor com idade inferior a 16 anos, absolutamente inimputável (art.º
19.º do CP), não estando, por isso, sujeito a medidas de natureza
criminal.
Se ambos tomam parte directa
na execução do facto típico, existe, ainda que um deles seja inimputável em
razão da idade, comparticipação (co-autoria).
Na esteira do saudoso
professor Cavaleiro de Ferreira, podemos afirmar que criminosa não é a
comparticipação, mas o contributo individual de cada agente que a integra.
Sendo que, nos termos do art.º
29.º do CP, “cada comparticipante é punido segundo a sua culpa,
independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”.
No caso concreto, a conduta do
menor com 15 anos, sendo típica e ilícita, não é culposa por força da referida
inimputabilidade (causa de exclusão da culpa).
Sendo assim, não releva, para
efeitos da excepção prevista no art.º
207.º n.º 2 «in fine», do CP, o facto de a conduta ser praticada por
duas pessoas, sendo uma delas inimputável em razão da idade.
Destarte, relativamente à
conduta do menor imputável (17 anos de idade), o procedimento criminal
dependeria apenas de queixa do ofendido e não de acusação particular. No que
concerne ao menor inimputável (15 anos), independentemente de se tratar de
facto qualificado pela lei como crime de natureza semi-pública, o Ministério
Público determinaria a abertura de inquérito (tutelar educativo) logo que
recebesse a correspondente «Participação por Factos Ilícitos» (art.ºs
72.º a 74.º da
Lei Tutelar Educativa).
5.2 – Conduta cometida
por duas pessoas, mãe e filho (de 15 anos de idade) – subtracção de bens de
primeira necessidade
Imaginemos que, num
supermercado, mãe e filho decidem adquirir, em conjunto, alguns ingredientes
para confeccionar o seu jantar, num total de 16,00 €. Como não têm dinheiro que
chegue para efectuar o pagamento, e porque se encontram esfomeados, decidem
tentar a “sorte”, saindo, cada um, com metade dos produtos subtraídos.
São interceptados, logo de
seguida, com os produtos na sua posse.
Não obstante os objectos terem
sido recuperados, incólumes, o facto de a conduta ter sido cometida por duas
pessoas (mãe e filho), conduz-nos à mesma solução do caso anterior, art.º
207.º n.º 2 «in fine», do CP (ou seja, à natureza semi-pública).
Contudo, entendemos que aqui
existe uma particularidade. A actuação concertada visou a satisfação de uma necessidade
básica e premente de ambos, a sua alimentação.
Sendo assim, embora se
encontre excluída a natureza particular do furto por força do requisito
negativo previsto art.º
207 n.º 2 «in fine», do CP (regime especial para furtos em
estabelecimentos comerciais), entendemos que ele pode assumir essa natureza
particular por via do art.º
207.º n.º 1 al.ª b) do mesmo diploma legal. [1]
6 – Considerações finais
O facto de o furto em
estabelecimentos comerciais revestir natureza particular pode comprometer, em
determinadas circunstâncias, a tutela adequada do direito de propriedade.
Como sabemos, perante um crime
de furto de natureza semi-pública, qualquer cidadão pode, em caso de flagrante
delito, proceder à detenção do infractor, caso não esteja presente ou não possa
ser accionada em tempo útil uma autoridade judiciária ou entidade policial;
devendo entregá-lo, neste caso, imediatamente a uma dessas entidades nos termos
do art.º
255.º n.º 1 al.ª b) e n.º 2 do CPP.
Contudo, face a um crime de
natureza particular, tal não ser possível, havendo lugar apenas à identificação
do infractor (art.º
255.º n.º 4 do CPP).
Neste caso, não estando
presente uma autoridade policial ou uma entidade policial (ou não sendo
possível a sua imediata comparência), o proprietário do estabelecimento
comercial (ou, v.g., alguém encarregado pela segurança) não tem
legitimidade para obrigar o infractor a identificar-se, nem deter o mesmo para
efeitos de identificação.
Como sabemos, a detenção de
suspeitos da prática de crimes para efeitos de identificação [art.º
27.º n.º 3 al.ª g) da CRP] só pode ser efectivada por órgãos de
polícia criminal (art.º
250.º n.º 1 do CPP). [2]
_____________________________
[1] O mesmo sucederia – o procedimento criminal depender de acusação particular –, caso mãe e filho, com fome e sem dinheiro, optassem por se deslocar a um restaurante e consumir o prato do dia, negando-se, de seguida, a solver a dívida contraída [art.º 207.º n.º 1 al.ª b), «ex vi» art.º 220.º n.º 3 do CP – burla para obtenção de alimentos ou bebidas].
[1] O mesmo sucederia – o procedimento criminal depender de acusação particular –, caso mãe e filho, com fome e sem dinheiro, optassem por se deslocar a um restaurante e consumir o prato do dia, negando-se, de seguida, a solver a dívida contraída [art.º 207.º n.º 1 al.ª b), «ex vi» art.º 220.º n.º 3 do CP – burla para obtenção de alimentos ou bebidas].
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