Hoje decidi escrever sobre uma
matéria que muitas dúvidas tem suscitado, sobretudo ao nível dos profissionais
que com ela lidam no seu dia-a-dia, a de saber qual o procedimento a adoptar
perante um suspeito da prática de uma contra-ordenação que não seja possuidor
de qualquer documento de identificação ou equivalente legal, ou que, em casos
mais extremos, se recusa a identificar-se.
No que a esta matéria
concerne, perfilho da opinião de que será também aplicável o procedimento de
identificação previsto no art.º
250.º do Código de Processo Penal (CPP). Passarei a fundamentar tal
convicção.
Alguns autores entendem que a
recusa de identificação, pelo agente de uma contra-ordenação, perante uma
autoridade policial, enquanto conduta violadora de um dever de identificação,
se deve subsumir no tipo de crime de desobediência, após efectuada a devida
cominação [art.º
348.º n.º 1 al.ª b) do Código Penal]. V.g. Parecer
da PGR, n.º 13/96.
Admito que, cominar tal recusa
de identificação com o crime de desobediência, seria uma forma eficaz de
dissuadir quem o pretende fazer, aspirando inviabilizar todo o processo
contra-ordenacional. No entanto, tal cominação é violadora do princípio da subsidiariedade
do direito penal (ou da intervenção mínima), como tal consagrado no art.º 18.º n.º 2 da
Constituição da República Portuguesa (CRP).
Num Estado de Direito
Democrático, a intervenção do direito penal deve surgir como «ultima ratio»,
somente quando os outros ramos do direito falhem, protegendo, subsidiariamente,
certos bens jurídicos tidos como fundamentais. Desse modo, não será lícito
recorrer a ele com o objectivo de sancionar violações de não evidente dignidade
penal, como é o caso dos ilícitos de mera ordenação social.
Contudo, correntemente, as
contra-ordenações constituem a principal área de actividade da polícia (v.g.,
infracções rodoviárias, ruído em excesso, consumo de estupefacientes e
substâncias psicotrópicas). Apesar de os bens jurídicos tutelados pelos
diplomas contra-ordenacionais não revestirem a importância ética daqueles que
são tutelados pelas normas penais, necessário se torna, no entanto, que a repressão
dessas infracções seja dotada de mecanismos eficazes de fiscalização e
controlo, de modo a permitir a aplicação da correspondente sanção.
Impõe-se, necessariamente,
para a prossecução do processo contra-ordenacional, munir a actividade policial
de instrumentos legais aptos a proceder à identificação do seu autor, sob pena
da sua não responsabilização. Consciente dessa necessidade, o legislador
estabeleceu, no art.º
49.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro [Regime Geral das
Contra-Ordenações (RGCO)], a possibilidade de as autoridades administrativas
competentes, bem como as autoridades policiais, poderem “exigir ao agente de
uma contra-ordenação a respectiva identificação”, incumbindo-lhes, ainda, “tomar
as medidas necessárias para impedir o desaparecimento de provas” (art.º
48.º n.º 1 do RGCO), onde se inclui a elaboração do auto de notícia
por contra-ordenação, de forma cabal, pela autoridade autuante, prova
documental da constatação daquela infracção e respectiva autoria.
Do ponto de vista
constitucional, podemos aferir, da consulta do art.º 32.º n.º 10,
da CRP, que existe uma equiparação entre as garantias dos processos criminal e
contra-ordenacional, em termos de direito de audiência e defesa. No que
concerne ao recurso, garantido no processo criminal (art.º 32.º n.º 1,
da CRP), encontra-se igualmente garantido aos cidadãos no processo
contra-ordenacional (contencioso administrativo), sempre que se vejam lesados
por qualquer acto material (art.º
268.º n.ºs 4 e 5 da CRP), onde se inclui a identificação na qualidade
de suspeito de uma contra-ordenação.
O próprio RGCO não afasta essa
equiparação, atribuindo, no seu art.º
48.º n.º 2, às autoridades policiais, direitos e deveres equivalentes aos
que lhe são conferidos em matéria criminal.
Tendo em consideração o
elemento histórico, enquanto factor hermenêutico, não podemos deixar de
“espreitar” o anterior regime geral das contra-ordenações (Decreto-lei n.º
232/79, de 24 de Julho), o qual, no seu art.º 42.º, possibilitava,
expressamente, a detenção do autor de uma contra-ordenação pelo tempo
estritamente necessário à sua identificação, em caso algum superior a 24 horas.
Esta possibilidade viria a ser
afastada do regime contra-ordenacional por haver dúvidas sobre a sua
constitucionalidade. Contudo, nessa altura, ainda não existia a alínea g) do
art.º 27.º n.º 3 da CRP. Esta somente viria a ser introduzida na quarta
revisão constitucional (operada através da Lei
n.º 1/97, de 20 de Setembro), com a seguinte redacção: “Detenção de
suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente
necessários”.
Este preceito - que se manteve
inalterado - não esclarece qual a natureza da suspeita (se estamos perante
suspeitos da prática de crime ou de contra-ordenação. Ainda assim, existem
autores que defendem que o suspeito, aqui previsto, coincide, na integra, com a
noção de suspeito do art.º1.º
al.ª e) do CPP. [1]
Mas, a ser assim, não seriam
inconstitucionais, v.g., os art.ºs
4.º n.º 2da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (detenção para
identificação em regime contra-ordenacional); [2] e 28.º
n.º 1 al.ª a) da Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto (uma suspeita ainda
não jurídico-penalmente relevante) ?
Face ao exposto, e perante a
falta de formalismos na exigência estabelecida no «supra» referido art.º
49.º do RGCO, propendemos em considerar que, no âmbito
contra-ordenacional, serão aplicáveis as directrizes do art.º
250.º do CPP, por força da subsidiariedade patente no art.º
41.º n.º 1, do mesmo RGCO, sempre que o seu autor não seja possuidor de
documento de identificação ou se recuse a identificar.
Somente esta solução resolve o
problema sentido pelas forças policiais quando se deparam, em flagrante delito,
com uma contra-ordenação, cujo autor, não se recusando a identificar, alega, no
entanto, não possuir qualquer documento de identificação, não sendo possível certificar,
no local, a sua identidade, com a exactidão e certeza necessárias. Perante a
situação fáctica anunciada, sendo impossível qualquer meio de identificação
alternativo (v.g., alguém que apresentasse o seu documento de identificação) e
estando vedada a sua condução ao posto policial, restaria, aos agentes de
autoridade, anotarem os dados pessoais verbalmente fornecidos pelo autor da
infracção. É claramente inadmissível esta via, sob pena de se desacreditar o
processo contra-ordenacional, bem como a própria autoridade, credibilidade e
eficácia policial, neste âmbito. [3]
Esta solução é aquela que
melhor se adequa ao princípio da proporcionalidade, como tal entendido na 2.ª
parte do art.º
18.º n.º 2 da CRP. Como visto «supra», a adopção do procedimento de
identificação previsto no art.º
250.º do CPP, «ex vi» art.º
41.º n.º 1 do RGCO, relativamente à posição doutrinal que entende que
a recusa de identificação deve ser cominada com o crime de desobediência, art.º
348.º n.º 1 al.ª b) do CP, permite cumprir o princípio da
subsidiariedade do direito penal, possibilitando, ainda, a protecção do bem
jurídico “função de autoridade pública” (Teresa
Beleza, pág. 105), de forma eficaz, através de um mecanismo menos ofensivo
do que o recurso à sanção penal.
É, pois, muito menos ofensivo,
face à recusa, deter o suspeito de uma contra-ordenação pelo tempo estritamente
indispensável à identificação (art.º 27.º n.º 3
al. g) da CRP), tempo esse que se poderá alongar até às 6 horas (art.º
250 n.º 6 do CPP), do que deter esse mesmo suspeito pelo crime de desobediência,
que justifica uma detenção que se poderá prolongar até às 48 horas [art.º
254.º n.º 1 al.ª a) do CPP].
Relativamente à condução ao
posto policial de quem não possui qualquer documento de identificação –
apanágio de quem se pretende furtar à responsabilidade contra-ordenacional –,
para além de indispensável do ponto de vista social, sob pena da sua ineficácia,
corresponde a uma restrição de direitos, liberdades e garantias, necessária,
nos termos da 2.ª parte do art.º 18.º n.º 2 da
CRP, “para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos", a saber, as funções de autoridade ao serviço do interesse
público. A restrição dos direitos, liberdades e garantias, como meio de “satisfazer
as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade
democrática”, é uma possibilidade admitida no art.º
29.º n.º 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), «ex
vi», art.º
16.º n.º 2 da CRP.
Em abono da minha convicção
está o facto de que, desde o momento da abordagem de um suspeito da prática de
um ilícito contra-ordenacional, ele vê-se, desde logo, privado da sua
liberdade. Essa privação não começa somente quando ele é conduzido ao posto
policial. Há situações, até, em que a condução ao posto policial poderá ser
menos ofensiva dos direitos fundamentais. Assim, teremos, v.g., o caso de
determinado indivíduo que é abordado num local onde é sobejamente conhecido e
respeitado. Permanecer naquele local iria certamente afectar o seu bom-nome e
reputação, bem como a sua imagem (art.º 26.º n.º 1 da
CRP), o que não aconteceria se fosse conduzido ao posto policial, recôndito dos
olhares curiosos.
- Identificação de menores com
idade inferior a 16 anos
Como sabemos, nas
contra-ordenações [art.º
10.º do Regime Geral das Contra-ordenações, RGCO (Decreto-lei n.º
433/82, de 27 de Outubro)], tal como nos crimes [art.º
19.º do Código Penal (CP)], os menores são inimputáveis.
Sendo assim, a um menor com
idade inferior a 16 anos (conta o dia seguinte ao do seu aniversário) não
poderá ser imputada a responsabilidade criminal ou contra-ordenacional. Mas
poderá essa responsabilidade ser transmitida do menor para os seus pais?
No que concerne à
responsabilidade penal, a resposta é claramente negativa, desde logo, por força
do art.º
30.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Quanto à
responsabilidade contra-ordenacional a solução não é unânime.
Porém, a minha modesta opinião
– que penso acompanhar a doutrina e jurisprudência maioritárias – propende no
sentido de considerar que também a responsabilidade contra-ordenacional é
intransmissível. Como já teve oportunidade de se pronunciar, «et alii», o
Supremo Tribunal Administrativo, o princípio da intransmissibilidade das penas,
previsto no já referido art.º
30.º n.º 3 da CRP, deve aplicar-se a qualquer tipo de sanção, por ser
a única solução conciliável com os seus fins justificativos, a saber, a
prevenção e repressão de contra-ordenações (não a obtenção de receitas).
Devemos ter em atenção, no
entanto, que a inimputabilidade é uma causa de exclusão da culpa, mas não da
ilicitude; ou seja, apesar de a sua responsabilidade criminal e
contra-ordenacional se encontrar excluída por falta do requisito da culpa, o
facto que o menor praticou continua a ser ilícito, dada a sua desconformidade
com a lei vigente.
Se esse facto ilícito –
praticado por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos – fosse
qualificado pela lei como crime, poderia levar à aplicação de uma medida
tutelar educativa, prevista na Lei n.º 166/99, de 14 de Fevereiro, estando o
procedimento de identificação previsto no art.º
50.º deste mesmo diploma legal.
Relativamente a factos
ilícitos praticados por menores com idade inferior a 16 anos, qualificados pela
lei como contra-ordenação, desconhece-se qualquer diploma semelhante.
Excluída a responsabilidade
contra-ordenacional do menor e não havendo norma semelhante à contida no art.º
135.º n.º 7 al.ªs b) e c), do Código da Estrada, e art.º
8.º n.º 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (para o
qual remete, v. g., o art.º
8.º n.º 1 da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho – Transgressões em
Transportes Colectivos de Passageiros), que responsabilizam, pela
contra-ordenação, os seus pais; o facto ilícito por si praticado, apenas poderá
ser tido em conta para efeitos de responsabilidade civil [art.º
483.º do Código Civil (CC)], esta extensível aos pais por força do art.º
491.º do mesmo CC. [4]
Para este fim, a identificação
do menor terá que decorrer no local, nunca podendo ser conduzido ao Posto
Policial. Tendo em consideração que a maioria circula sem qualquer documento de
identificação, até porque nada obriga ao contrário, podemos estar perante um
problema irresolúvel .
Note-se, no entanto, que um
polícia experiente poderá, aquando da identificação, aperceber-se da falsidade
dos dados de identificação fornecidos pelo menor, conduta, actualmente,
qualificada pela lei como crime (falsas declarações, art.º
348.º-A do Código Penal), podendo, neste caso, aquele ser conduzido ao
posto policial, por tempo nunca superior a 3 horas (art.º
50.º da Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro).
________________________
[1] No que concerne a
este assunto, v.g., GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, na sua «Constituição
da República Portuguesa Anotada» (Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora,
2007), mais precisamente na parte XII, da pág. 483 (em anotação ao art.º 27.º),
referem que: “Fica em aberto o sentido de suspeito para efeitos de detenção
para identificação”, sendo que, só em princípio, “ele tem o sentido densificado
por leis penais de processo penal”. Destacamos estes autores, já que,
curiosamente, os defensores da tese contrária apenas usam a parte final dessa
anotação...
[2] Estabelece o art.º
4.º n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que: “Quando não seja possível
proceder à identificação do consumidor no local e no momento da ocorrência,
poderão as autoridades policiais, se tal se revelar necessário, deter o
consumidor para garantir a sua comparência perante a comissão, nas condições do
regime legal da detenção para identificação”.
[3] Repare-se que, até
Março de 2013, mesmo que o identificando declarasse, verbalmente, dados falsos
sobre a sua identidade, não resultaria daí qualquer sanção. Na vigência do
Decreto-lei n.º 33.725, de 21 de Junho de 1944 - que viria a ser revogado pelo art.º
53.º al.ª a) da Lei n.º 33/99, de 18 de Maio -, era punível a
prestação de falsas declarações sobre a identidade. Estabelecia o art.º 22.º
que: "Aquele que declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário
no exercício das suas funções, identidade, estado ou outra qualidade a que a
lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, será punido com prisão até
seis meses.” Visando colmatar esta lacuna, foi aditado, ao Código Penal,
através da Lei
n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, o art.º
348.º-A (com epígrafe “falsas declarações”). Agora, destinando-se, as
falsas declarações, a ser exaradas em documento autêntico (v.g., auto de
notícia por contra-ordenação, art.º
169.º do CPP, «ex vi» art.º
99.º n.º 4), poderá, o declarante, ver subsumida a sua conduta no n.º
2 do art.º 348.º-A do CP (pena de prisão até 2 anos ou pena de multa).
[4] Até à entrada em
vigor da Lei
n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado 2014), se um menor,
com idade inferior a 16 anos, fosse surpreendido a usufruir de sistema de
transporte colectivo de passageiros sem título de transporte válido, não lhe
poderia ser aplicada qualquer coima, devido à sua inimputabilidade, nem a mesma
poderia ser transmitida aos seus pais. Actualmente, o art.º
8.º n.º 1, da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho, remete as transgressões em
transportes colectivos de passageiros para o Regime Geral das Infracções
Tributárias (RGIT), sendo competente para a instauração e instrução de
processos de contra-ordenação e aplicação de coimas o serviço de finanças da
área do domicílio fiscal do agente de contra-ordenação. No caso de a infracção
ser praticada por menor, serão, agora, solidariamente responsáveis os seus
pais, por via do art.º
8.º n.º 5 do RGIT.
Sem comentários:
Enviar um comentário