I – Nos últimos anos, tive oportunidade de me pronunciar, por diversas
ocasiões, a título informal, sobre o tema que hoje decidi trazer à liça.
Como sabemos, «grosso modo», a
responsabilidade disciplinar – no caso que ora nos interessa, dos trabalhadores
em funções públicas – resulta da violação de deveres decorrentes da função
exercida (seja por acção ou por omissão).
Praticada uma infracção,
exige-se um procedimento disciplinar célere, de modo a que a pena seja aplicada
enquanto os efeitos negativos da conduta ainda estão presentes, não só no
serviço afectado, mas, e sobretudo, na mente do infractor.
Acresce o facto de que, com o
decorrer do tempo, aumentam as dificuldades de prova (existe, v.g., uma
diminuição do rigor dos factos declarados pelas testemunhas).
Nesta linha de pensamento, o
legislador tem consagrado, de forma clara, o princípio da prescritibilidade,
não só relativamente à infracção disciplinar, mas também ao procedimento
disciplinar.
Sendo assim, o superior
hierárquico que tenha conhecimento da violação de deveres funcionais (gerais ou
especiais), por parte de um subalterno, tem um determinado prazo para instaurar
o correspondente procedimento disciplinar, sob pena de prescrição da infracção.
Instaurado o procedimento
disciplinar (dentro do prazo referido no parágrafo anterior), existe um prazo
máximo, inultrapassável, para o proferimento de uma decisão disciplinar.
A este propósito, refere-nos o art.º
178.º n.º 5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei
n.º 35/2014, de 20 de Junho), doravante denominada pela sigla LGTFP, que: “O
procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses, a contar da data em que
foi instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não tenha sido notificado da
decisão final”.
Mas, poderá – ou melhor,
deverá – esta norma ser aplicada subsidiariamente a outros regulamentos
disciplinares especiais que não prevejam a prescrição do procedimento
disciplinar (v.g., Regulamento Disciplinar da Polícia Judiciária ou da Polícia
de Segurança Pública)?
II – Analisemos, a título
exemplificativo, um desses Regulamentos Disciplinares especiais, o da Polícia
de Segurança Pública, publicado em anexo à Lei n.º 7/90, de 20 de
Fevereiro.
No que à prescrição concerne,
encontramos, neste diploma, mais precisamente no art.º 55.º, a prescrição do
direito de instaurar procedimento disciplinar, mas não a do próprio
procedimento disciplinar (quando instaurado).
Esta inadmissível
imprescritibilidade do procedimento disciplinar levou a que, em 2003, o Conselho
Consultivo da PGR emitisse um Parecer,
considerando que tal lacuna deveria ser integrada nos termos do art.º
10.º do Código Civil, aplicando-se, por analogia, o art.º
121.º n.º 3 do Código Penal (CP).
Deste modo, a prescrição do
procedimento disciplinar teria sempre lugar quando, desde o seu início, e
ressalvado o tempo de suspensão, tivesse decorrido o prazo normal da prescrição
acrescido de metade.
Assim, tendo em consideração o
disposto no art.º 55.º
n.ºs 1 e 2 «in fine» do RDPSP, adicionando ao prazo normal de
prescrição (3 anos) a sua metade (1 ano e meio), obtínhamos um limite
inultrapassável para o procedimento disciplinar, a saber: 4 anos e meio.
III – Contudo, desde a
emissão do referido Parecer decorreram cerca de 12 anos.
Neste hiato temporal, por via
da intensa actividade legística, o fundamento que o determinou – inexistência,
no Regulamento Disciplinar da PSP, de um prazo-limite para a prescrição do
procedimento disciplinar – deixou de existir (como fundamentaremos «infra»).
Actualmente, deve aplicar-se
ao procedimento disciplinar previsto no Regulamento Disciplinar da PSP
(doravante RDPSP), o prazo de 18 meses previsto no art.º
178.º n.º 5 da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (LGTFP), por via da
subsidiariedade manifesta no art.º 66.º do mesmo
RDPSP.
Como refere, e bem,
parece-nos, o Supremo Tribunal Administrativo, no seu Acórdão
de 22 de Maio de 2015 – entendimento que já havia sido perfilhado pelo
Tribunal Central Administrativo do Sul, no seu aresto de 26 de Março de 2015:
«Apresenta-se como manifesto
que se aplica o prazo de 18 meses previsto no art.
6º, nº6, da lei 58/2008, de 09 de Setembro, cominação que é replicada no
regime actual, no art.
178º, nº5, da lei 35/2014, de 20 de Junho, ao procedimento disciplinar
regulado no Regulamento
Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei nº 7/90, de 20 de Fevereiro, com
redacção introduzida pela Lei 5/99, de 27 de Janeiro, que é aplicável ao
pessoal com funções policiais dos quadros da Polícia de Segurança Pública (PSP)
independentemente da natureza do respectivo vinculo, não carecendo o
interprete- aplicador de realizar qualquer actividade interpretativa complexa
ou minimamente exigente para alcançar essa conclusão, para alem daquela que
resulta da mera leitura do texto legal e que actualmente é inequívoca».
Como salienta, na parte final
transcrita, nem é necessária uma actividade hermenêutica complexa para chegar a
este resultando, bastando tão-somente recorrer ao mero elemento literal ou
gramatical.
Esta conclusão não vem
contrariar o conteúdo do Parecer do Conselho Consultivo da PGR, pois este
encontra-se desactualizado face à legislação vigente, senão repare-se:
IV – No já longínquo ano
de 2003, ao consultarmos o art.º 55.º do RDPSP,
com epígrafe “prescrição do procedimento disciplinar”, verificávamos – tal como
ainda hoje – que apenas existia a prescrição do direito de instaurar
procedimento disciplinar e NÃO prescrição do procedimento disciplinar após a
sua instauração.
Perante esta omissão, o
procedimento disciplinar poderia perdurar, inadmissivelmente, «ad eternum».
Tendo presente que não existe
lacuna na lei quando ela própria indica um direito subsidiariamente aplicável,
seria necessário escalpelar o art.º 66.º do RDPSP, tentando
encontrar uma solução, primeiramente no regime-padrão do direito disciplinar –
no então denominado Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local [1].
Nessa altura, porém, o
Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central,
Regional e Local, no que concerne à prescrição do procedimento disciplinar,
dispunha o seguinte no seu art.º
4.º:
(Prescrição de procedimento
disciplinar)
1 - O direito de
instaurar procedimento disciplinar prescreve passados 3 anos sobre a data em
que a falta houver sido cometida.
2 - Prescreverá
igualmente se, conhecida a falta pelo dirigente máximo do serviço, não for
instaurado o competente procedimento disciplinar no prazo de 3 meses.
3 - Se o facto
qualificado de infracção disciplinar for também considerado infracção penal e
os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a 3 anos,
aplicar-se-ão ao procedimento disciplinar os prazos estabelecidos na lei penal.
4 - Se antes do
decurso do prazo referido no n.º 1 alguns actos instrutórios com efectiva
incidência na marcha do processo tiverem lugar a respeito da infracção, a
prescrição conta-se desde o dia em que tiver sido praticado o último acto.
5 - Suspendem
nomeadamente o prazo prescricional a instauração do processo de sindicância aos
serviços e do mero processo de averiguações e ainda a instauração dos processos
de inquérito e disciplinar, mesmo que não tenham sido dirigidos contra o
funcionário ou agente a quem a prescrição aproveite, mas nos quais venham a
apurar-se faltas de que seja responsável.
Esta era uma norma em muito
semelhante ao art.º
55.º do RDPSP, que não resolvia, por isso, o problema da referida
omissão.
Daí que, como bem fundamentado
no referido Parecer do Conselho Consultivo da PGR, tendo em consideração que a
prescrição é um instituto de direito substantivo [2],
a solução deveria ser encontrada no regime-padrão do direito sancionatório, o
Código Penal, mais precisamente no art.º
121.º n.º 3, que dispunha (e assim se mantém) o seguinte:
A prescrição do procedimento
criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo da
suspensão, tiver decorrido o prazo normal da prescrição acrescido de metade.
Quando por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a 2
anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.
Esta norma penal seria
aplicada por analogia e não como norma subsidiária, já que, nos termos do art.º 41 do RDPSP, só
existe aplicação supletiva do Código Penal “em tudo o que não estiver regulado
(…) quanto à suspensão ou demissão por efeito de pena imposta por decisão
judicial (…)"; e, como sabemos, o art.º 66.º do RDPSP
(direito subsidiário), remete para as normas adjectivas do processo penal e não
para o direito penal.
Todavia, essa analogia deixou
de fazer sentido com a entrada em vigor da Lei
n.º 58/2008, de 09 de Setembro, diploma que aprovou o Estatuto Disciplinar
dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, mais precisamente com o
conteúdo do art.º
6.º n.º 6, a saber:
Prescrição do procedimento
disciplinar
(…)
6 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.
(…)
A partir da sua entrada em
vigor, deixou, pois, de haver a lacuna invocada no parecer do Conselho
Consultivo da PGR.
Hoje, o art.º 66.º do RDPSP
remete subsidiariamente para o regime-padrão do direito disciplinar – Estatuto
Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas –, e lá encontramos
um prazo-limite para a prescrição do procedimento disciplinar (uma solução sem
ter que recorrer à analogia), a saber: “18 meses contados da data em que foi
instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão
final”.
Embora o art.º
6.º n.º 6 do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem
Funções Públicas viesse a ser revogado pela Lei
n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em funções Públicas),
encontramos, neste último diploma recompilador, a sua reprodução «ipsis verbis»
no art.º
178.º n.º 5.
Artigo 178.º
Prescrição da infração
disciplinar e do procedimento disciplinar
(…)
5 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses, a contar da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não tenha sido notificado da decisão final.
(…)
5 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses, a contar da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não tenha sido notificado da decisão final.
(…)
Este prazo de prescrição do
procedimento disciplinar é um prazo peremptório (inultrapassável), a partir do
qual se deve considerar extinta a responsabilidade disciplinar, e que apenas
admite a suspensão prevista no n.º
6 do art.º 178.º.
V – Se admitíssemos,
actualmente, as conclusões do Parecer do Conselho Consultivo da PGR – aplicação,
por analogia, do art.º
121.º n.º 3 do Código Penal –, o procedimento disciplinar só
prescreveria decorridos 9 anos e meio. Senão vejamos.
Segundo o Parecer, a
prescrição teria sempre lugar se, desde o início do procedimento disciplinar,
decorresse o prazo normal de prescrição acrescido de metade (total de 4 anos e
meio), ressalvando-se o tempo de suspensão.
Ora, com a entrada em vigor da alínea
e) do n.º 1 do art.º 120.º do CP [3] –
por intermédio da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro – os recursos passaram a
suspender o prazo de prescrição, podendo, a suspensão, atingir os 5 anos (art.º
120.º n.º 4 do CP).
Sendo assim, se somarmos o
prazo normal de prescrição acrescido de metade (4 anos e meio) ao prazo máximo
de suspensão (5 anos), teremos os referidos 9 anos e meio.
Se não se aplicasse o prazo de
18 meses previsto no art.º
178.º n.º 5 da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (LGTFP), por via da
subsidiariedade manifesta no art.º 66.º do RDPSP,
poderia, inadmissivelmente, ao fim de, v.g., 5 anos, não haver sequer
acusação, pois ainda faltariam 4 anos e meio para a prescrição do procedimento
disciplinar.
VI – Então e se houver
notificação da decisão final no prazo de 18 meses (a contar da data em que o
procedimento foi instaurado)?
Neste caso, como forma de
delimitar temporalmente os recursos, teremos, como «ultima ratio», que
recorrer, por analogia, ao referido art.º
121.º n.º 3 do CP (estabelecendo como limite inultrapassável os 9 anos
e meio).
Entendemos, contudo, que este
é um prazo de prescrição extremamente longo para um procedimento disciplinar,
ainda que, na maioria, sejam admissíveis 3 recursos hierárquicos.
No que a esta matéria
concerne, antevê-se uma solução, mais razoável, no tão anunciado «novo»
Regulamento Disciplinar da PSP.
Este conterá, certamente, um
artigo muito semelhante ao art.º 46.º do
Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana (RDGNR), actualizado
pela Lei n.º 66/2014 de 28 de Agosto, o qual se passa a transcrever:
Prescrição do procedimento
disciplinar
1 — O
procedimento disciplinar prescreve passados três anos sobre a data em que a
infracção tiver sido cometida.
2 — Exceptuam -se as infracções disciplinares que constituam ilícito criminal, as quais só prescrevem, nos termos e prazos estabelecidos na lei penal, se os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a três anos.
3 — O direito de instaurar o procedimento disciplinar prescreve também se, conhecida a falta pela entidade com competência disciplinar, aquele não for instaurado no prazo de três meses.
4 — A prescrição interrompe -se com a notificação da acusação ao arguido.
5 — A prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que:
a) Estiver pendente processo de sindicância, de averiguações, de inquérito ou disciplinar, ainda que não dirigidos contra o militar da Guarda visado;
b) O procedimento disciplinar não puder legalmente iniciar -se ou continuar por falta de decisão do tribunal sobre processo judicial pendente, ou por efeito de apreciação jurisdicional de questão prejudicial.
6 — No caso previsto na alínea a) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar três anos.
7 — A prescrição do procedimento disciplinar tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
2 — Exceptuam -se as infracções disciplinares que constituam ilícito criminal, as quais só prescrevem, nos termos e prazos estabelecidos na lei penal, se os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a três anos.
3 — O direito de instaurar o procedimento disciplinar prescreve também se, conhecida a falta pela entidade com competência disciplinar, aquele não for instaurado no prazo de três meses.
4 — A prescrição interrompe -se com a notificação da acusação ao arguido.
5 — A prescrição do procedimento disciplinar suspende-se durante o tempo em que:
a) Estiver pendente processo de sindicância, de averiguações, de inquérito ou disciplinar, ainda que não dirigidos contra o militar da Guarda visado;
b) O procedimento disciplinar não puder legalmente iniciar -se ou continuar por falta de decisão do tribunal sobre processo judicial pendente, ou por efeito de apreciação jurisdicional de questão prejudicial.
6 — No caso previsto na alínea a) do número anterior, a suspensão não pode ultrapassar três anos.
7 — A prescrição do procedimento disciplinar tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
Podemos verificar que não é
necessário recorrer, por analogia, ao art.º
121.º n.º 3 do CP, para concluir que “a prescrição do procedimento
disciplinar tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de
suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade”,
pois esta solução encontra-se no próprio art.º 46.º n.º 7 do
RDGNR.
Nesse prazo normal de
prescrição (3 anos) acrescido de metade (1 ano e meio) é ressalvado o tempo de
suspensão – caso das alíneas a) e b do n.º
5 do mesmo art.º 46.º (já não existe suspensão em caso de recurso da
decisão, art.º
120.º n.º 1 al.ª e) do CP).
Com uma norma semelhante,
também o RDPSP não necessitará de se socorrer, de forma subsidiária, da Lei n.º
35/2014, de 20 de Junho (LGTFP), mais concretamente do seu art.º
178.º n.º 5 . Contudo, até lá...
_____________________________
[1] Aprovado
pelo Decreto-lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro.
[2] Embora
não ignore que existem autores que se referem às normas reguladoras da
prescrição como “normas processuais penais materiais”.
[3] Estabelece
o art.º 120.º n.º 1 al.ª e) que:
1 - A prescrição
do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente
previstos na lei, durante o tempo em que:
(…)
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
(…)
e) A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
Sem comentários:
Enviar um comentário