O antigo Primeiro-Ministro
José Sócrates, anunciou ter processado o Estado português, para contestar a
forma como está sendo tratado pelo Departamento Central de Investigação e Acção
Penal (DCIAP) e pelo Tribunal Central de Investigação e Acção Penal. Disse tê-lo
feito, porque o Estado se portou indecentemente, e por isso, recorreu aos
Tribunais Internacionais.
Sobre o assunto, tenho “ouvido
cobras e lagartos”, certo é, que Sócrates agiu como devia – e certamente porque
pôde fazê-lo. É que sendo a arbitrariedade um pecado capital em Processo Penal, comportando-se
como a consequência normal da ampla discricionariedade concedida a um qualquer Juiz
neste tipo de processo, não podia nem devia agir de outra forma, sob pena do mesmo
conduzir a sérias consequências, no que diz respeito aos direitos, liberdades e
garantias constitucionalmente consagrados.
Contrariamente ao que se
passa no Direito Administrativo, em que teórica e praticamente há a
possibilidade de impedir a execução de um qualquer acto discricionário da administração
manifestamente ilegal, quer por via de recurso contencioso - antecedido de uma
providência cautelar, através da qual se peça a suspensão da sua execução, no Direito Processual
Penal essa garantia não existe. E não existindo, qualquer cidadão que se preze e tenha meios para o fazer em defesa daquilo que considera ser a sua honra, não pode nem deve ficar impávido e sereno à espera
de melhores dias. E a razão é simples: é que se um Juiz de Instrução Criminal a pedido do Ministério Púbico concede a prisão preventiva ao abrigo do seu
poder discricionário, por maior que seja a ilegalidade por ele cometida, por mais arbitrária que seja a sua decisão - desde que
determinados requisitos formais mínimos tenham sido garantidos - não há
juridicamente meio de impedir a execução dessa decisão. O arguido, suspeito da
prática de crime doloso punível com pena de prisão - em princípio superior a
três anos - vai mesmo para a cadeia, e somente por via do recurso para a
instância superior, poderá pôr termo à execução da medida de coacção decretada.
Porém e no caso concreto, o tempo que lá passou já ninguém lho tira e o juízo
que a opinião pública faz do facto que lá o levou, também não. Isto, sem
esquecer que o Tribunal de instância superior, goza igualmente de grande
discricionariedade na apreciação da decisão tomada pelo Tribunal inferior.
Por via de tais factos, é uma
pena que às Faculdades de Direito ainda não tenha chegado uma cadeira de
Teoria do Direito, na qual a discricionariedade pudesse ser estudada como
categoria autónoma, à semelhança do que sucede em Direito Administrativo a
propósito da actuação da administração.
Portanto, para além da ampla
discricionariedade concedida aos Juízes em Processo Penal, junta-se muitas
vezes a impreparação dos juristas para atacar este específico problema, e
principalmente para criar o necessário clamor público que leve à reformulação
da lei e dos princípios em que essa mesma lei até agora tem tido assento.
É de facto chocante que alguém
– seja quem fôr, esteja preso sem julgamento, sem sequer ter
conhecimento dos específicos crimes de que o acusam, dos concretos factos em
que os mesmos se fundamentam, e principalmente de uma ACUSAÇÃO, para assim
poder eficazmente fazer a sua defesa. O regime vigente, abre desta forma a
porta a todas as arbitrariedades, e permite que a luta política – como na caso
em apreço - se infiltre na justiça pela porta dos fundos, sempre que o suspeito
é uma personalidade da respectiva esfera.
O caso de Sócrates é por isso
um exemplo disso mesmo!... Um exemplo, em primeiro lugar, porque o Ministério Público e o Juiz
foram os responsáveis por o Processo ter vindo para a praça pública e por se
ter arrastado e sem fim à vista. E em segundo, porque desde a prisão quando
chegou de Paris, passando pelas buscas da Rua Braamcamp, até aos factos
meticulosamente filtrados para os jornais - veículos das teses da investigação,
tudo foi criteriosamente trabalhado e permitido. O que se pretendia demonstrar com
este tipo de atitudes, era uma situação típica da luta política não INTEIRAMENTE
COBERTA PELO DIREITO, mas de grande eficácia junto da opinião pública, capaz de
gerar instintivamente um sentimento de revolta e de “Justiça de Pelourinho”
perfeitamente compreensível. Ou seja: pretendeu-se demonstrar com tais
comportamentos, que um ex-governante vivia muito acima das suas possibilidades
e que levava um estilo de vida insusceptível de ser compreendido à luz dos
rendimentos por ele declarados.
Este é pois o ponto de partida
deste “Processo Marquês”, mas que constitui o facto mais facilmente
demonstável: “VIVER ACIMA DAS POSSIBILIDADES”. Sendo certo que possa ser repugnante para a sociedade, é também certo que NÃO CONSTITUI CRIME no Direito Penal português, o que quer
dizer, que não sendo um tipo legal de crime, ninguém poderá ser preso por viver
acima das suas possibilidades ou por ser titular de um património que está
muito para além dos seus rendimentos. Se o fosse, “toda” a população portuguesa
estaria entre grades, quando foi acusada por Passos Coelho de ter vivido em
tais moldes – isto é, acima das possibilidades de cada um.
E mais:não indo tão longe, se isso fosse possível, a maior parte daqueles que em Portugal não trabalham
por conta de outrem, ou seja, desde os pequenos e médios comerciantes,
industriais e agricultores, passando pelas profissões liberais, pelos artífices
e prestadores de serviços de todo o tipo até aos grandes patrões do comércio,
da indústria, da agricultura e dos serviços, toda a gente estaria de “rabo
preso” e não haveria cadeias que chegassem para albergar tanta gente. Ou será
que alguém terá dúvidas desta realidade, em que grande parte dos respectivos
rendimentos não batem certo com o património de que muitos deles dispõem?!...
Ora isto diz-nos o seguinte: para
que tais situações possam ser criminalmente atacáveis, é preciso que a acusação
através do Ministério Público faça prova dos específicos crimes que podem
levar àquele resultado, como por exemplo, é o caso entre muitos outros, da
corrupção, da fraude fiscal, do branqueamento de capitais, ou da participação
ilícita em negócio.
No caso do “Processo Marquês”,
apesar de decorridos quase quatro anos de investigação, a única coisa certa que
ocorreu, foi a prisão de um cidadão durante 300 dias, sem que ao fim de todo
este tempo e do outro que até hoje se lhe seguiu, não tenha sido deduzida
qualquer ACUSAÇÃO. E sendo assim, caberá perguntar: quais os pressupostos que conduziram à
dita prisão?!...
Agora e mais uma vez, ressalta
já para a opinião pública a ideia da prorrogação dos prazos de investigação –
que expiram em 17 de Março próximo – tendo como fundamento a extrema
complexidade do Processo, principalmente após as declarações do senhor Battaglia (mais uma vez
transmitidas para a esfera pública) que tudo indica veio dirigir para outros
horizontes a investigação do “Processo” e aparentemente salvá-la de um
monumental fiasco.
Que percam então a vergonha e
o prorroguem!... Mas uma coisa há que já ninguém pode tirar de cima do
Procurador Rosário Teixeira e do Juíz Carlos Alexandre: afinal, depois de
caídos os “fortes indícios de corrupção” pelo Grupo Lena, das Auto-Estradas, da
Parque Escolar, dos contratos com a Venezuela, de Vale do Lobo e do Grupo
Octapharma, as verdadeiras suspeitas de corrupção de José Sócrates estão afinal
no Grupo GES. Uma vergonha!... Afinal, andaram a investigar Sócrates durante
quatro anos e prenderam-no durante dez meses à conta de falsas pistas e falsas
suspeitas, e foi preciso ter agora chegado um sujeitinho que havia sido
impedido de sair de Angola e se deslocou a Portugal após prévia negociação com
a Justiça, que à 25.ª hora os fez ver a luz ao fundo do túnel e os terá safado
de nada terem para apresentar no dia 17 de Março. Mas que brilhantismo…
Ora perante as
evidências destes factos, será pois pacifico concluir, que o Processo Penal tal
como está regulado na nossa lei, permite que uma acusação menos escrupulosa e
um Juiz parcialmente justiceiro possam prender uma pessoa, só porque
alguém suspeita que um estilo de vida manifestamente acima das suas possibilidades
assenta em actos criminosos. E sabem que ao fazê-lo, principalmente nos termos
em que já o fizeram, cai bem numa
opinião pública sedenta de “sangue”, por força principalmente das brutais
medidas de austeridade de que tem sido vitima e lhe têm sido impostas para
pagar as falcatruas dos bancos, a insensatez dos governantes e os desvarios de
um sistema que não olha a meios para aumentar os lucros à custa da exploração
desenfreada da maior parte dos cidadãos contribuintes.Tratando-se de Sócrates,
o “eterno culpado” de ter levado o país à bancarrota, a sede da “justiça de
pelourinho”, é ainda maior.
Só que isto, é nada mais nada
menos que o fim do Estado de Direito. É mesmo um atentado ao Estado de Direito, e quem perpetra este tipo de acções, não pode deixar de ser responsabilizado.
Em Processo Penal não vale tudo e muito menos vale usar o Processo Penal como
instrumento de luta política.
Os factos dados a conhecer por
Sócrates na conferência de Imprensa, e de cuja existência já se suspeitava,
configuram uma situação da máxima gravidade a que urge rapidamente pôr termo. A
Justiça não pode prender um cidadão por suspeita de crimes não indiciados por
factos específicos, negar-se a exibir perante o detido as provas em que
fundamenta a sua detenção e demorar “ad
eternum” uma investigação. Mais: a prisão não pode ser o instrumento
primeiro de uma investigação, como tudo dá a entender ter sido o caso, muito
menos poder servir para aterrorizar ou humilhar um qualquer arguido, que no
caso se tratou de um ex.Primeiro-Ministro, mas poderia ser um qualquer outro
cidadão.
Depois de tudo quanto ficou aqui dito e por respeito, não a alguém em particular, mas aos cidadãos em geral, urge perguntar pois, onde começa e onde
acaba o Estado de Direito....